Nascera assim. Velho. Hoje os 40 e pocos anos cheiram a muitos mais. A obesidade latente instalou-se ao lado da intolerância e iminente complexo de superioridade. Não fala. Dá aulas, palestras a quem o interpela. Inatacável a palavra mais usada. Acena com a paixão por livros que devora como bicho de papel no seu cubiculo cinzento atolhado de coisas improváveis. Insuportável, dizem uns, uma besta, comentam outros. Não os ouve. Os canais auditivos estão bloqueados para fora. Arrota de satisfação. Ri-se dos impropérios que lhe saem da boca. Observa com avidez as gajas boas. O cabelo colado à testa pelo suor que cai em bica na camisola interior de alças que usa 365 dias no ano. A roupa coçada condiz com a falta de limpeza. Os punhos não abotoam a gordura. O andar abanado, soltando frases soltas. E o estatuto que se arroga e não merece. Segue todos os dias o mesmo caminho abanando a mala que transporta. Um solitário que não percebe que o é.
redescobrir-me, libertar-me de algumas das camadas de pele que teimam em não cair, reinventar-me expondo a minha nudez...
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quarta-feira, 25 de março de 2009
quarta-feira, 18 de março de 2009
foi o ciúme que impediu Raul de dormir
Deitou-se contrafeito, não lhe saia da memória aquele olhar. Aqueles breves segundos mudaram a sua vida. O olhar penetrante, o bater descompassado do coração que julgava já não ter. O toque ao de leve daquela pele macia, quando se baixou para lhe apanhar o lenço. Todo aquele corpo novo, por explorar, que não lhe pertencia por direito, encimado por aquele sorriso desconcertante que lhe dirigira de agradecimento. Na mão uma aliança, a seu lado um homem demasiado velho que não a merecia e que nem dera por nada. Ana, chamara-lhe ele com voz rouca. Não é crime apaixonar-se por alguém comprometido, repetira incessantemente. O amor acontece, não se escolhe, Raul dizia a si próprio, enquanto rebuscava na memória o cheiro daquele perfume inebriante. É precipitado terminar uma relação assim mas que se lixe, ela nunca iria perceber a bem. Joana ressonou alto e virou-se na cama enlaçando-se no seu corpo. Por breves instantes imaginou Ana em situação idêntica e afastou-a com repulsa. Foi o ciume que impediu Raul de dormir.
terça-feira, 10 de março de 2009
Hoje
Hoje a chegada foi diferente. Um grande tumulto à porta anunciava um mau presságio.
O Manel chorava, amparado por colegas que desconhecia ter. O rosto empapado, traído por aquele beicinho de adolescente que quer ser adulto mas ainda não é.
Hoje o Manel estava ali, à porta, num desespero de homem imberbe.
Investida na minha autoridade de tia, larguei o carro e aproximei-me.
Reconheceu-me e soluçou ainda mais.
"Tia! Tia!" de repente tenho mais sobrinhos do que a minha arvore genealógica comporta.
" Ele viu tudo!" fiquei na mesma.
"Tudo o quê?" arrisquei intrigada.
" Tudo! Mesmo tudo!- confirmou-me um coro de vozes- o homem!"
Franzi o sobrolho " Que Homem?" olhei em redor.
" O que morreu!" disse-me uma cara nova.
" Morreu um Homem? Onde?" estou incrédula.
"Ali - apontaram-me em surdina- na passagem de nível!"
"Vi tudo!" disse Manel com olhos de terror.
Imagino a cena tão dura para uns olhos tão novos.
Abraço-o e contenho-lhe os soluços que, em espasmos, lhe atravessam o corpo.
O Manel chorava, amparado por colegas que desconhecia ter. O rosto empapado, traído por aquele beicinho de adolescente que quer ser adulto mas ainda não é.
Hoje o Manel estava ali, à porta, num desespero de homem imberbe.
Investida na minha autoridade de tia, larguei o carro e aproximei-me.
Reconheceu-me e soluçou ainda mais.
"Tia! Tia!" de repente tenho mais sobrinhos do que a minha arvore genealógica comporta.
" Ele viu tudo!" fiquei na mesma.
"Tudo o quê?" arrisquei intrigada.
" Tudo! Mesmo tudo!- confirmou-me um coro de vozes- o homem!"
Franzi o sobrolho " Que Homem?" olhei em redor.
" O que morreu!" disse-me uma cara nova.
" Morreu um Homem? Onde?" estou incrédula.
"Ali - apontaram-me em surdina- na passagem de nível!"
"Vi tudo!" disse Manel com olhos de terror.
Imagino a cena tão dura para uns olhos tão novos.
Abraço-o e contenho-lhe os soluços que, em espasmos, lhe atravessam o corpo.
terça-feira, 27 de janeiro de 2009
o quarto mudou de cor...
O quarto mudou de cor, de tamanho, de tudo. Azul, agora é azul. A cama cresceu tanto, arrefecida pela tua ausência, como a detesto! Arrastei aquele biombo de patos tolos e virei-lhe as costas. Os dois candeeiros tortos ainda desafiam a gravidade. No psiché jazem colares e vejo-me envelhecer todos os dias. A gata teima em subir para a televisão para ver o jardim por entre os cortinados. Já não a afasto. Ocupei o roupeiro todinho para que não reste qualquer espaço ou recordação de ti. Já nada sobra, já nem tenho espaço para mim. Os sapatos multiplicam-se como coelhos numa cartola. Um dia encerro este quarto de vez. Juro!
terça-feira, 20 de janeiro de 2009
Assim é Cascais na despedida
A terra afastava-se lentamente de mim como que suplicando-me para não partir. A água rodeava-me abraçando-me. Lentamente o casario suspenso nos penhascos deslizava, como se a sua imobilidade se tivesse tornado desnecessária. As praias sucediam-se entre areias brancas e escarpas recortadas pela ira do mar, hoje calmo. O comboio corria procurando acompanhar-nos percorrendo a terra que ora subia ora descia a seu belo prazer. Pontilhada por torres altas agressivamente dissonantes, sucediam-se, palmeiras, penhascos, casas com história, aqui e acolá guindastes agigantavam-se sobre os esqueletos dos novos prédios. Hoje o Tejo beijava-lhe suavemente os pés enquanto do outro lado o mar hesitava entre a valentia e a cobardia. A bela fortaleza tão esquecida perdeu o belicismo e observava os barcos indolentemente ricos enquanto protegia os outros, assombrados por bandos de frenéticas gaivotas .
Assim é Cascais na despedida.
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