quinta-feira, 13 de novembro de 2008

chamo-lhe João



Chamo-lhe João, terá os anos que a vida lhe deu.
Vive ali, debaixo dos meus olhos, incomoda-me vê-lo de olhar fixo, inexpressivo, sem que um ruido saia daquele corpo.
Pouco come.
Durante o dia está sentado no banco do jardim junto à fonte.
Por vezes defeca ali mesmo, em pé, na esquina da casa rosa, nesses momentos envergonha-se, torna-se humano, só por instantes...depois retoma o autómato em que a vida o transformou.
Dia e noite, sob sol escaldante ou chuva torrencial permanece absorto, envolto no amontoado de trajes sem sentido, perdeu-lhes a cor, tal como perdeu o Mundo ou como o Mundo o perdeu...
Admiro-lhe as mãos, finas demais para a sua personagem...
Hoje vejo-o a escrever calmamente, com gestos fáceis, como se a escrita fosse algo que ainda domina.
Estou curiosa , esse corpo de voz emudecida, tem vida...
Quero saber se essas palavras alinhadas têm nexo ou se estão para lá perdidas...
Aproximo-me, fixando esse olhar vazio, que me esconde do que foge, e roubo-lhe o caderno sem pensar, folhei-o e espanto-me com o que leio...
Agora tudo faz sentido.
Sento-me, em silêncio, de olhar vazio a seu lado no banco de jardim.

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