segunda-feira, 30 de março de 2009

era um domingo como tantos outros

Era um domingo como tantos outros.
Laura subira no elevador panorâmico. Eu tenho vertigens. Cá de baixo vi-a subir, lentamente, até a perder de vista. O sol estava intenso e não me recordo de mais nada. Laura continuou a subida, munida da sua máquina fotográfica que, alegremente, disparava em todas as direcções. António era agora um ponto negro no chão. Nada mais. Deu umas voltas naquele arranha-céus, suspirou de felicidade e retomou a descida. O horizonte admirável. O sol intenso. A paisagem estasiante. Tentou encontrar António. Já não via um ponto, mas vários. António parecia ter-se multiplicado. Um ponto, intermitente, azul destoou desviando-lhe a atenção. Na aproximação os pontos metamorfosearam-se em silhuetas e a luz intermitente em ambulância. Estranho, pensou. Procurou entre as silhuetas o rosto de António mas estavam todas debruçadas sobre alguém que jazia no chão. E o elevador, lentamente, a deslocar-se. E Laura, rapidamente, a descontrolar-se. A sentir-se claustrofóbica e a não tirar os olhos daquele corpo. Que era o meu. Por fim chegou ao solo, as portas emperraram e teimaram em não abrir. O suor a escorrer-lhe do rosto e das palmas das mãos que fincava contra os vidros. Eu aqui, imóvel, no chão. Ela ali, impotente, por detrás daquele vidro. Finalmente o botão de emergência accionado e do lado de fora alguém abriu as portas. Laura correu na minha direcção, atropelando tudo e todos. Eu permaneci imóvel, mesmo quando me tocou. Ouvi os seus gritos e todos os sons do seu choro quando a agarraram. Momentos antes de correrem o fecho éclair deste saco preto.

quarta-feira, 25 de março de 2009

que belo dia

Nascera assim.Velho.

Nascera assim. Velho. Hoje os 40 e pocos anos cheiram a muitos mais. A obesidade latente instalou-se ao lado da intolerância e iminente complexo de superioridade. Não fala. Dá aulas, palestras a quem o interpela. Inatacável a palavra mais usada. Acena com a paixão por livros que devora como bicho de papel no seu cubiculo cinzento atolhado de coisas improváveis. Insuportável, dizem uns, uma besta, comentam outros. Não os ouve. Os canais auditivos estão bloqueados para fora. Arrota de satisfação. Ri-se dos impropérios que lhe saem da boca. Observa com avidez as gajas boas. O cabelo colado à testa pelo suor que cai em bica na camisola interior de alças que usa 365 dias no ano. A roupa coçada condiz com a falta de limpeza. Os punhos não abotoam a gordura. O andar abanado, soltando frases soltas. E o estatuto que se arroga e não merece. Segue todos os dias o mesmo caminho abanando a mala que transporta. Um solitário que não percebe que o é.

quarta-feira, 18 de março de 2009

até lá

não te reconheço
envelheceste o espírito
mudaram tantas coisas
tu estagnaste
eu evolui para onde pude
não me reconheço
rejuvenesci o espírito
mudaram tantas coisas
eu evolui
tu estagnaste onde ficaste
se estou bem?
não sei
tenho dias
se estás bem?
não sabes
achas que sim
continuamos os nossos caminhos
tão diferentes
cada um a achar que é o certo
quando chegarmos ao fim veremos
quem tem razão
até lá

foi o ciúme que impediu Raul de dormir

Deitou-se contrafeito, não lhe saia da memória aquele olhar. Aqueles breves segundos mudaram a sua vida. O olhar penetrante, o bater descompassado do coração que julgava já não ter. O toque ao de leve daquela pele macia, quando se baixou para lhe apanhar o lenço. Todo aquele corpo novo, por explorar, que não lhe pertencia por direito, encimado por aquele sorriso desconcertante que lhe dirigira de agradecimento. Na mão uma aliança, a seu lado um homem demasiado velho que não a merecia e que nem dera por nada. Ana, chamara-lhe ele com voz rouca. Não é crime apaixonar-se por alguém comprometido, repetira incessantemente. O amor acontece, não se escolhe, Raul dizia a si próprio, enquanto rebuscava na memória o cheiro daquele perfume inebriante. É precipitado terminar uma relação assim mas que se lixe, ela nunca iria perceber a bem. Joana ressonou alto e virou-se na cama enlaçando-se no seu corpo. Por breves instantes imaginou Ana em situação idêntica e afastou-a com repulsa. Foi o ciume que impediu Raul de dormir.

segunda-feira, 16 de março de 2009

era um fim de tarde

Era um fim de tarde (ou antes um fim de dia). Estávamos debaixo da terra (bem não propriamente mas quase). Todos dentro de um metro (não um metro de medir, mas um metro andante de metal) atafulhado de gente (ou melhor de pessoas).
Subitamente as portas abrem-se (não foi propriamente de repente, o metro abrandou primeiro) entra um homem carregado de notas (não de notas musicais, mas sim de notas a sério, dinheiro mesmo e é certo que não estava carregado, as notas não pesam assim tanto, era uma mão cheia, quando muito, o que já não era pouco) e começa a oferecê-las em voz alta (não era ele que era alto, mas sim a voz, há que precisar, precisar de precisão e não de ser preciso/necessário). Adiante...
Entreolhámo-nos, sem um pio (não que algo piasse porque é óbvio que no metro não há pássaros) ou seja, ninguém se manifestou (de manifestação). O homem, cada vez mais irritado (de irritação mesmo) começa a insultar-nos de pobretanas (não de "pobre o tanas", mas sim de pobrezinhos que não têm onde cair mortos, esta ultima parte não é a sério é só uma força de expressão).Adiante, mais uma vez...
Como ninguém aceitou a oferta, ele vai e espeta com uma nota no chão (não é espeta de espetar porque as notas são moles e não se espetam, é espeta de atirar) e saiu de cena (que é como quem diz saiu do metro, na estação claro, que ele podia ser doido mas não era parvo).
Dentro da carruagem (não carruagem daquelas puxadas a cavalos, mas sim carruagem de ferro movida a electricidade), as pessoas não tiram os olhos da nota (tirar os olhos não é bem, é mais um olhar fixamente) mas todos disfarçam o desejo, como manda a boa educação (isto pensei eu, mas adiante...) de súbito (ou melhor, de imediato) uma jovem adolescente (daquelas quase, quase adultas) levanta-se e apanha a nota (não é apanhar de levar tareia, isso não faria sentido, é apanhar de agarrar) e todos nós esboçamos um sorriso concordante (do verbo concordar).
Paragem seguinte e agora entra um pedinte (daqueles que pedem mesmo a sério, não que alguns peçam a fingir, mas percebem o que quero dizer. Dizer não. Escrever).
E, instintivamente, todos desatámos a rir (de riso mesmo) enquanto que a adolescente esboçava um gesto de pena (não de pena de ave, mas sim de compaixão. Não é "com paixão" mas é parecido, agora não me apetece explicar mais)
Subitamente todos nós (não nós de noz, antes a gente. Não agente da policia, vocês percebem, não percebem?) adivinhámos o que ela pensava e instintivamente abanámos a cabeça (não é bem abanar é mais movimentar de um lado para o outro). Perante tal manifestação (não era um comício), ela resolve conter o gesto e lá se foi embora o pedinte todo irritado. (cheio de irritação mesmo) por ter falhado o objectivo (isto se é que pedir é um objectivo. Eu acho que sim, sinceramente com toda a sinceridade).
E pronto cheguei ao fim, mesmo no final da história (Finalmente!)

quinta-feira, 12 de março de 2009

hoje

hoje foi o dia

normal

anormal

já nem sei porque tenho esperanças...


DESISTO

quarta-feira, 11 de março de 2009

terça-feira, 10 de março de 2009

Hoje

Hoje a chegada foi diferente. Um grande tumulto à porta anunciava um mau presságio.
O Manel chorava, amparado por colegas que desconhecia ter. O rosto empapado, traído por aquele beicinho de adolescente que quer ser adulto mas ainda não é.
Hoje o Manel estava ali, à porta, num desespero de homem imberbe.
Investida na minha autoridade de tia, larguei o carro e aproximei-me.
Reconheceu-me e soluçou ainda mais.
"Tia! Tia!" de repente tenho mais sobrinhos do que a minha arvore genealógica comporta.
" Ele viu tudo!" fiquei na mesma.
"Tudo o quê?" arrisquei intrigada.
" Tudo! Mesmo tudo!- confirmou-me um coro de vozes- o homem!"
Franzi o sobrolho " Que Homem?" olhei em redor.
" O que morreu!" disse-me uma cara nova.
" Morreu um Homem? Onde?" estou incrédula.
"Ali - apontaram-me em surdina- na passagem de nível!"
"Vi tudo!" disse Manel com olhos de terror.
Imagino a cena tão dura para uns olhos tão novos.
Abraço-o e contenho-lhe os soluços que, em espasmos, lhe atravessam o corpo.

sábado, 7 de março de 2009

as cores que tenho em mim

tantas cores me cercam e sufocam
tantas me povoam os sentidos
frias, quentes
indiferentes
aos sentimentos
que te escondo
sei que vês somente
as cores que tenho em mim
intoxico-me por entre cafés frios e o fumo dos cigarros

não me escrevo

não me escrevo
no silêncio não há letras
fugidas as vozes
os dedos permanecem solitários
frios


há tempo que fujo do tempo
enquanto ele foge de mim